Entrevista com Bianca Santana e sua pesquisa sobre a escrita de si de mulheres negras
Entrevista com Bianca Santana e sua pesquisa sobre a escrita de si de mulheres negras
Bianca Maria Santana de Brito
biancasantana@gmail.com
Sobre a entrevistada
Em 2020, a pesquisadora Bianca Maria Santana de Brito defendeu sua tese de doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da USP, sob orientação do Prof. Dr. Marco Antônio de Almeida.
Aos 38 anos, Bianca tem como hobbies ler e escrever. É autora das obras “Arruda e Guiné: resistência negra no Brasil contemporâneo” publicado em 2022, “Continuo preta: a vida de Sueli Carneiro” publicado em 2021 e “Quando me descobri negra” publicado em 2015.
Em plena pandemia, Bianca defendeu sua tese intitulada “A escrita de si de mulheres negras: memória e resistência ao racismo”, que partiu da hipótese de que a escrita de si de mulheres negras, de formulação estética de sua própria existência de trabalho de memória possibilita a constituição de subjetividades e de sujeitos coletivos que permitem resistir ao racismo. A pesquisadora partiu de reflexões acerca das formulações de Sueli Carneiro sobre racialidade, biopoder, epistemicídio e resistência, interpretados à luz de teorias da memória, arquivos, organização política de mulheres negras, resistência e de informações do contexto em que a escrita foi realizada. Ao final, foi possível concluir que a escrita de si de mulheres negras é um instrumento de produção e circulação de informação e conhecimento, técnica de pesquisa e tecnologia individual e coletiva de resistência ao racismo.
Convidamos Bianca para relatar sobre sua experiência no doutoramento e pesquisa.
Divulga-CI: O que te levou a fazer o doutorado e o que te inspirou na escolha do tema da tese?
Bianca Brito (BB): Pesquisar, estudar, ler, escrever são atividades que me dão muito prazer e ajudam a responder às minhas constantes inquietações. Mestrado e depois doutorado foram possibilidades de me dedicar ao que gosto de fazer. Meu projeto inicial não tinha nada a ver com o tema da tese em si. Eu pretendia estudar redes sociais e identidade racial. Mas as discussões sobre memória que conheci durante o doutorado me convocaram a mudar o tema da pesquisa. Meu orientador foi muito importante em me ajudar a identificar nas oficinas de escrita que eu já oferecia havia anos um método de pesquisa interessante, efetivo e inovador.
DC: Em qual momento de seu tempo no doutorado você teve certeza que tinha uma “tese” e que chegaria aos resultados e conclusões alcançados?
BB: Mais ou menos na metade. Eu já havia cursado as disciplinas, já havia delimitado melhor o tema da pesquisa e o método a partir de muitas trocas com meu orientador. Me senti segura de que tinha uma tese, mesmo que ela não fosse aceita ou bem recebida, a tese existia.
DC: Citaria algum trabalho (artigo, dissertação, tese) ou ação decisiva para sua tese? Quem é o autor desse trabalho, ou ação, e onde ele foi desenvolvido?
BB: A tese de doutorado de Sueli Carneiro, defendida em 2005 na Faculdade de Educação da USP: “A construção do outro como não-ser como fundamento do ser.”
DC: Por que sua tese é um trabalho de doutorado, o que você aponta como ineditismo?
BB: Identificar a escrita de mulheres negras tanto como registro de memória como ação de resistência à política de morte e ao racismo não é exatamente inédito. Mas o método de pesquisa, em que ofereço oficinas de escrita e analiso as produções textuais de mulheres negras, em vez de fazer entrevistas ou grupos focais, por exemplo, me parece algo inédito. Assim como a classificação da resistência em sete diferentes eixos analíticos: sobrevivência física, preservação da saúde e da capacidade cognitiva; elaboração de traumas; organização de sujeitos coletivos; crítica aos processos de exclusão racial, social e de gênero; ruptura com a subordinação e a subalternização aos discursos de dominação racial, de gênero e social; olhar a partir de uma perspectiva própria; proposição de caminhos de emancipação individual e coletiva
DC: Em que sua tese pode ser útil à sociedade?
BB: Espero que ela já esteja sendo útil no reconhecimento e no suporte à escrita de mulheres negras como possibilidade de emancipação coletiva; e na percepção de que a produção e o cuidado da memória são fundamentais para enfrentar o racismo.
DC: Quais são as contribuições de sua tese? Por quê?
BB: Além do que eu já disse, há uma reflexão sobre documentos e sobre o tempo que me parecem contribuições importantes para escaparmos de uma lógica colonial e eurocêntrica.
DC: Quais foram os passos que definiram sua metodologia de pesquisa?
BB: Passei bastante tempo presa a uma ideia engessada de metodologia que não necessariamente atendia às necessidades da minha pesquisa. Meu orientador foi fundamental em perceber que as oficinas de escrita que eu já realizava ofereciam um caminho para responder às perguntas da pesquisa.
DC: Em termos percentuais, quanto teve de inspiração e de transpiração para fazer a tese?
BB: 0,01% de inspiração e 99,9% de transpiração.
DC: Teria algum desabafo ou considerações a fazer em relação à caminhada até a defesa e o sucesso da tese?
BB: Ao contrário do mestrado, que foi um processo muito pesado, a caminhada do doutorado foi leve, prazerosa, com muito espaço para imaginação crítica, reflexões profundas e experimentações. Quando fui chegando ao final fui ficando triste, estava tão bom ser doutoranda e poder me dedicar a tese. Como seria depois?
DC: Como foi o relacionamento com a família durante o doutorado?
BB: Quando fui aprovada no processo seletivo do doutorado, minha filha tinha 4 anos, meu filho do meio 6 e o mais velho 8. Quando defendi a tese tinham 8, 10 e 12 anos. Foi um período de transformações muito intensas de cada um deles, de fechar a primeira infância e de repente estar às portas da adolescência. Tivemos muito apoio para que as necessidades deles e dela estivessem atendidas nos períodos de mergulho mais intenso na pesquisa e na escrita da tese. Meu companheiro, minha mãe, minha enteada, minhas amigas foram fundamentais para que eu conseguisse me dedicar ao trabalho de doutorado com a certeza de que as crianças estavam cuidadas e felizes. Em resumo, tive muito apoio e incentivo familiar.
DC: Qual foi a maior dificuldade de sua tese? Por quê?
BB: Uma insegurança, um medo de afirmar o que eu realmente achava importante afirmar. Minha principal dificuldade era lidar comigo mesma.
DC: Que temas de mestrado citaria como pesquisas futuras possíveis sobre sua tese?
BB: Seria muito bacana se alguém topasse aprofundar a reflexão que inicio sobre a noção de epistemicídio, tal como é trabalhada por Sueli Carneiro, com a organização da informação. Aprofundar o que seria uma ciência da informação não colonial. Além disso, não sei se faria sentido classificar mais textos literários de mulheres negras de acordo com os sete eixos que proponho.
DC: Quais suas pretensões profissionais agora que você se doutorou?
BB: Estou muito grata e feliz por poder trabalhar diretamente com a produção e o cuidado da memória a partir do acervo de Sueli Carneiro, ativista negra e minha principal referência teórica. Tenho co-orientado pesquisas, o que é algo que também me dá muito prazer. Mas gostaria de estar vinculada novamente à universidade, mas agora como docente.
DC: O que faria diferente se tivesse a chance de ter começado sabendo o que sabe agora?
BB: Confiaria que o processo é tão importante quanto o resultado e que minhas inseguranças podem me acompanhar, mas não precisam me atrapalhar tanto.
DC: Como você avalia a sua produção científica durante o doutorado (projetos, artigos, trabalhos em eventos, participação em laboratórios e grupos de pesquisa)? Já publicou artigos ou trabalhos resultantes da pesquisa? Quais você aponta como os mais importantes?
BB: Durante o doutorado avalio como boa minha produção. Mas depois da defesa tive muito menos tempo para reflexões mais longas. Não publiquei um artigo-síntese da tese ainda, por exemplo. Lamento muito por isso.
DC: Exerceu alguma monitoria/estágio docência durante o doutorado? Como foi a experiência?
BB: Quando comecei o doutorado eu já era professora no curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero. Só ao final do primeiro ano de doutorado é que abri mão da docência no ensino superior e me dediquei integralmente à pesquisa.
DC: Elas contribuíram em sua tese? De que forma?
BB: A relação com estudantes de graduação é sempre mágica porque nos permite revisitar o que parece muito consolidado a partir de diferentes perspectivas e provocações. As oficinas de escrita durante a tese, além de método, permitiram esse contato e essa troca rica também.
DC: Agora que concluiu a tese, o que mais recomendaria a outros doutorandos e mestrandos que tomassem seu trabalho como ponto de partida?
BB: Eu alertaria ter cuidado com o capítulo 2 chamado “mulheres negras”. Hoje eu faria outro percurso no capítulo, talvez até com outra abordagem.
DC: Como acha que deve ser a relação orientador-orientando?
BB: De confiança mútua e muito apoio do orientador para o orientando. Eu tive a sorte de viver essa relação de forma muito afetuosa, aberta, presente, honesta. Sou muito grata.
DC: Sua tese gerou algum novo projeto de pesquisa? Quais suas perspectivas de estudo e pesquisa daqui em diante?
BB: Tenho pensando na possibilidade de fazer um pós-doc aprofundando um capítulo da tese chamado “Os documentos de nossos antepassados existem e estão esperando por nós”.
DC: O que o Programa de Pós Graduação fez por você e o que você fez pelo Programa nesse período de doutorado?
BB: O Programa foi excelente. Desde o apoio das funcionárias para toda a burocracia, às excelentes aulas, debates, seminários, conferências. Me senti muito estimulada, amparada e acolhida. Talvez eu tenha trazido diversidade e provocações ao Programa, mas também não tenho certeza sobre isso.
DC: Você por você:
BB: Curiosa e com muito desejo de contribuir com a construção de um mundo onde todas as pessoas possam viver em segurança, justiça, acesso a direitos e liberdade.
Entrevistada: Bianca Maria Santana de Brito
Entrevista concedida em: 27 abr. 2023 aos Editores.
Formato de entrevista: Escrita
Redação da Apresentação: Herta Maria de Açucena do Nascimento Soeiro
Fotografia: Bianca Maria Santana de Brito
Diagramação: Herta Maria de Açucena do Nascimento Soeiro