O lugar das Bibliotecas na construção da Pluriversidade, por Luciana Gracioso
O lugar das Bibliotecas na construção da Pluriversidade
Luciana de Souza Gracioso
luciana@ufscar.br
As Universidades Públicas Brasileiras se confirmam, cada vez mais, como sendo um dos espaços mais qualificados para produção do ensino, da ciência e, principalmente, da cidadania nacional. Nos últimos anos temos presenciado nos ambientes acadêmicos, de modo geral, o efeito revolucionário oriundo da implementação das Políticas de Ações Afirmativas.
Na perspectiva social, ainda estamos muito longe de atingirmos a configuração ideal e equitativa de acesso, permanência e pertencimento a esse espaço, por todas as pessoas estudantes. Mas, ao mesmo tempo, podemos já reconhecer o quanto esses outros fluxos de mundos de vidas tem oportunizado, ao ambiente acadêmico, em diferentes áreas do conhecimento, rever suas bases epistemológicas, metodológicas, conceituais e informacionais.
Neste contexto, nos vemos desafiadas/os a pensar, a partir de toda a pluralidade que tem se apresentado e alterado os espaços acadêmicos, sobre qual o lugar da informação e, mais pontualmente, da Biblioteca, na construção daquilo que Boaventura de Souza Santos optou por denominar como Pluriversidade ao invés de Universidade.
Ancorada em reflexões construídas nas últimas duas décadas, sobre as relações indissociáveis dos estudos da Linguagem e da Comunicação com a Informação, arriscaria a sinalizar que, é deste lugar informacional, que podemos e devemos pensar ações que viabilizem todas as pessoas que atualmente tem reconstruído a matriz universitária brasileira, participarem efetivamente dela, ocupando não só os espaços físicos, como também os simbólicos e os ideológicos.
Neste sentido, as Bibliotecas e demais unidades informacionais, cumprem um papel decisivo e complementar à formação de pessoas emancipadas e cidadãs.
Ao estudar o paradigma do Bem Viver enquanto epistemologia dos povos originários andinos, Puente Hernandes (2013) nos ajuda a reencontrar alguns dos princípios elementares que regem o funcionamento de uma Biblioteca em um espaço público. A Biblioteca é a plataforma potencializadora das práticas democráticas de acesso à informação e à cultura, é esfera pública para a construção comunitária de saberes e ações. Por isso, assume antes, uma função política, na medida em que é responsável, não só por informar, mas por possibilitar a formação de novas consciências sobre os deveres e direitos a partir dos quais, todos nós, dentro de nossa condição humana, deveríamos nos encontrar.
Apesar de todos os avanços alcançados, de tantos projetos já desenvolvidos, não podemos nos omitir e não reconhecer que, ainda, temos muito por fazer. As Bibliotecas, que já foram palco e centelha para tantas revoluções, possuem, na atual conjuntura contemporânea de ocupação de espaços públicos, um papel determinante neste momento acadêmico, pois configuram-se como um lugar possível para todas as manifestações de saberes, culturas e linguagens. Franciéle Carneiro Garcês da Silva, inclusive, nos faz uma indicação, nesse sentido. Em seu texto “Perspectivas críticas e epistemologias negras na biblioteconomia”, nos diz que:
“O que se espera é que o fazer científico leve em conta outras formas de saber e que as perspectivas que buscam a criticidade, a inclusão, o respeito à diversidade e à pluralidade de pensamentos, sejam evidenciadas na Biblioteconomia contemporânea.” (SILVA, 2020, p. 102).
Nesse contexto, seguimos com a valorização, qualificação e sofisticação de tudo o que já construímos no escopo da área biblioteconômica, ao mesmo tempo em que precisamos seguir nos sensibilizando a ponto de reconhecermos suas incompletudes, para assim caminharmos na construção de uma biblioteconomia social e multicultural no sentido Paulo Freireano:
“A multiculturalidade não se constitui na justaposição de culturas, muito menos no poder exacerbado e uma sobre as outras, mas liberdade conquistada, no direito assegurado de mover-se cada cultura no respeito uma a outra, correndo risco livremente de ser diferente, sem medo de ser diferente […]. (FREIRE, 2020, p. 214).
Assim, defende-se que, ao transversalizar a oferta de produtos e serviços informacionais, com a promoção de ações artísticas e culturais, produzidas inclusive, por sua comunidade diversa e plural, nossas Bibliotecas assumem um lugar central na construção e na sobrevivência da democracia no contexto acadêmico.
No prefácio da obra do poeta e pensador martinicano Edouard Glissant, Enilce Rocha enfatiza que, para o autor, “[…] cabe as artes em geral e a literatura, a função essencial na propulsão do imaginário utópico de suas coletividades; do contrário, estas correm o risco de não se nomear, de calar sua voz, sua identidade, seu projeto coletivo. (GLISSANT, 2005, p. 9).
Nesse sentido, a Biblioteca assume uma responsabilidade importante na desconstrução de silenciamentos, opressões, anulações de formas de vidas e saberes, que foram, por vezes, sufocadas em diferentes momentos e eventos, mas que agora, no domínio do pensar e do fazer acadêmico, poderão se reestabelecer e fluir.
Ao mesmo tempo, nos convocamos a pensar a Biblioteca de forma antagônica a ideia de consensos, acordos e apaziguamentos. Uma biblioteca diversa, que cumpra seu lugar na construção de uma sociedade justa, emancipada e democrática, deve ser uma zona de negociação e de tradução. Precisamos reivindicar por campos discursivos e esferas comunicativas onde, como nos acena Catherine Walsh (2001) […] as desigualdades sociais, econômicas e políticas, e as relações e os conflitos de poder da sociedade não são mantidos ocultos e sim reconhecidos e confrontados (WALSH, 2001, p. 10-11).
Muniz Sodré nos disse que, enquanto seres humanos, somos comunicantes, mas não porque falamos, mas porque nos relacionamos e nos organizamos a partir das mediações simbólicas que construímos, em função de algo em comum, que queremos partilhar, sendo essas mediações, transverbais. (SODRÉ, 2014).
É neste lugar, de construção de poéticas da diversidade, que podemos localizar nossas Bibliotecas, para que sejam cada vez mais pluriversas, cosmológicas, transverbais e integradoras da multiculturalidade. Bibliotecas que assumam, como objetivo primeiro, a promoção do estabelecimento de relações dignas entre pessoas, entre pessoas e a natureza, entre pessoas e os artefatos culturais construídos no percurso destes encontros. A Biblioteca ocupa um lugar na desobediência epistêmica pois deve reivindicar pela construção de pensamentos científicos e ações culturais emancipadas. Ocupa a responsabilidade de promover a libertação da sociedade das novas alienações contemporâneas e o discernimento de construir outras consciências sobre as incompletudes do pensamento racional moderno, que por vezes se sobrepõe a todas as demais possibilidades de construção de saberes, no plano acadêmico.
Enfim, tem havido uma mudança contundente nas Instituições Públicas de Ensino Superior brasileiras, especialmente em âmbito Federal, para que sejam reconhecidas as injustiças cognitivas (e todas as demais injustiças decorrentes desta) na sociedade. Tal percepção e tomada de consciência, se dá, substancialmente, em função da presença da diversidade brasileira na construção da Universidade que se quer Pluriversidade. Nesse sentido, a Biblioteca pode se configurar como um dos principais equipamentos institucionais na luta contra tais injustiças, pois por ela, são possíveis que sejam estabelecidas as ações comunicativas mais genuínas que contemplem a multiculturalidade (Paulo Freire), que viabilizem as mediações transverbais (Muniz Sodré) e a criação de outros modos de responsabilidade e solidariedade (Catherine Walsh).
Referências
GLISSANT, E. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.
PUENTE HERNÁNDEZ, L. E. Biblioteca pública, democracia y buen vivir: aportes para la definición de políticas en Ecuador. Quito: FLACSO, Sede Ecuador, 2013. 210 p.
WALSH, C. La educación intercultural en la educación. Lima: Ministerio de Educación, Mimeografado, 2005.
WALSH, C. Pedagogías Decoloniales: Prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re) vivir. Quito: Ediciones Abya-Ayala, 2013.
SANTOS, B. de S. A universidade no século XXI. São Paulo: Cortez, 2004. p. 39-45.
Sodré, M. A ciência do comum – Notas para o método comunicacional. Petrópolis, RJ, Vozes: 2014. 323p.
FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020.
SILVA, F. C. G. da. Perspectivas críticas e epistemologias negras na biblioteconomia. In: Silva, F. C. G. da; Cardona, N. Epistemologias Latino-Americanas na Biblioteconomia e Ciência da Informação: Contribuições da Colômbia e do Brasil. Florianópolis, SC: Rocha Gráfica e Editora, 2020. (Selo Nyota).
Sobre a autora
É Professora no Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal de São Carlos. Chefe do Departamento de Ciência da Informação. Líder do Grupo de pesquisa: Pragma: estudos pragmáticos em ciência da informação.
Doutora em Ciência da Informação pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia e Universidade Federal Fluminense, mestre em Ciência da Informação e Biblioteconomia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas e Bacharela em Biblioteconomia e Documentação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho.
Redação e Foto: Luciana de Souza Gracioso
Diagramação: Herta Maria de Açucena do Nascimento Soeiro