Conhecimento Tradicional e a Ciência da Informação, por Célia Barbalho
Conhecimento Tradicional e a Ciência da Informação
Célia Regina Simonetti Barbalho
celia.simonetti@gmail.com
A Ciência da Informação (CI), enquanto uma disciplina que se dedica a investigar as propriedades e o comportamento da informação, os fluxos informacionais e as condições de seu processamento para viabilizar seu acesso e uso (BORKO, 1968), debruça seu olhar sobre a sua construção, comunicação e utilização.
Ao estudar as propriedades gerais da informação (natureza, génese, efeitos) e analisar os seus processos, enquanto um campo de práticas e pesquisas, a Ciência da Informação busca refletir sobre as questões que a sociedade enfrenta ao gerar, coletar, armazenar, analisar, recuperar e usar informações, envolvendo, dentre outros olhares, os elementos inerentes aos saberes tradicionais oriundos dos povos originários.
Neste aspecto o grupo de pesquisa Gestão da Informação e do Conhecimento na Amazônia (GICA) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), vem desenvolvendo um conjunto de pesquisas para estabelecer elementos que permitam ampliar a compreensão sobre estes saberes tradicionais no contexto amazônico. Trata-se de pesquisas de caráter exploratório que visam constituir insights e ideias para novas investigações, de modo a favorecer uma efetiva contribuição da Ciência da Informação para o local onde o grupo de pesquisa está inserido.
Embora estudos sobre a temática na perspectiva da CI tenham ampla repercussão global, o olhar local, inclusive o nacional, ainda é incipiente sendo necessário buscar compreender as características que envolvem o conhecimento tradicional dos povos originários da Amazônia brasileira.
Uma das pesquisas em execução é intitulada Cartografia dos conhecimentos indígenas que tem por objetivo examinar a produção científica, tecnológica e artística dos intelectuais indígenas da região Norte.
A pesquisa visa refletir, de modo exploratório, sobre o processo de construção e de legitimação da produção dos intelectuais indígenas enquanto inseridas em um espaço social que possui aspectos singulares de funcionamento e que se configura por meio da dinâmica e interação entre diferentes agentes da cultura colonial.
Com isto, investigar a produção científica destes sujeitos visando mapear quem são, se as temáticas que se debruçam refletem as questões cotidianas das comunidades locais, permitirá compreender as preocupações que os guiam, se existem especificidades na sua produção científica, se estabelecem relação de coautoria com seus pares, dentre outros aspectos, permitindo examinar os mecanismos implícitos à geração e construção do conhecimento de modo a constituir elementos para futuras reflexões sobre o tema.
Para atender ao objetivo proposto, a pesquisa adota a definição debatida na literatura brasileira que define o intelectual indígena como aquele que frequenta a universidade e forma-se intelectual na perspectiva acadêmica da pós-graduação stricto sensu. No que pese a compreensão dos pesquisadores de que esta denominação pode não ser a mais adequada para efetivamente denominar os sujeitos da pesquisa, sobretudo na perspectiva indígena onde os saberes nascem e se irradiam no chão batido da aldeia expressando verdades e visões próprias de cada povo, a pesquisa assume que ela personifica aqueles que frequentam a universidade e formam-se intelectuais no aspecto acadêmico, e o intelectual orgânico, no sentido gramsciano, comprometido com seu grupo social, com seu povo, sua comunidade e suas lutas.
Baniwa (2009) destaca que a universidade se configura como um espaço de formação qualificada não apenas para a composição de conhecimentos que possibilite o povo indígena elaborar e gerir projetos em suas terras, mas também para interagir com os níveis governamentais em busca de políticas de favoreçam estas populações, o que assevera aos povos originários o protagonismo na interlocução com a sociedade, ocupando espaços para assegurar o atendimento às suas demandas, sendo a formação destes intelectuais um projeto coletivo que reflete os anseios e objetivos das comunidades (BERGAMASCHI, 2015).
Nesta perspectiva, a pesquisa mapeou 153 intelectuais indígenas na Região Norte que possuem cadastro na Plataforma Lattes, sendo 123 mestres e 30 doutores. Por meio do ScripLattes serão extraídas e compiladas automaticamente as informações sobre: produções bibliográficas, produções técnicas, produções artísticas, orientações, projetos de pesquisa, prêmios e títulos, grafo de colaborações e coautoria.
Os dados obtidos serão debatidos com os pesquisadores indígenas que integram o Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (NEAI), o qual reúne professores e estudantes do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Um outro projeto em execução sobre a temática é um estudo bibliométrico denominado Gestão do Conhecimento Indígena, que objetiva mapear a produção científica sobre a questão visando avaliar sua dinâmica e evolução bem como reconhecer os principais autores, afiliações e enfoques abordados. Os resultados deverão permitir a identificação de tendências para pesquisas futuras e promover novas reflexões que possibilitem o desenvolvimento de estudos sob diferentes perspectivas de aplicação para as comunidades tradicionais brasileiras, ricas em saberes que contribuem para a manutenção de um ambiente equilibrado a partir das práticas aprendidas e transmitidas de gerações e gerações.
Da mesma forma que o projeto anterior, os resultados deste projeto serão inseridos na roda de conversa a ser realizada com os pesquisadores do NEAI.
Examinar os contextos científico e tecnológico que envolvem a produção do produto Pimenta Baniwa e a proteção de sua originalidade é o objetivo do projeto denominado Contextos & saberes da Pimenta Baniwa, que discute a questão dos saberes tradicionais que envolvem o empreendedorismo indígena feminino na Amazônia. Para tanto, o projeto elegeu como foco do estudo o produto Pimenta Baniwa Tipo Jiquitaia, inserido no mercado nacional e internacional desde 2013, com apoio do “Instituto Atá, organização não governamental, fundada por Alex Atala, famoso chef de cozinha em São Paulo” (ANDRADE, 2019, p.7), que se destaca pela sensibilidade ambiental da comunidade em fortalecer o uso racional da espécie vegetal por meio de uma ação afirmativa de ecodesenvolvimento. (SANCHES, 2010 apud ROCHA; BOSCOLO; FERNANDES, 2015).
A pimenta é um elemento importante na vida dos povos originários da Amazônia, sobretudo para os povos que habitam o Alto Rio Negro, onde tradicionalmente ocupa um lugar de destaque na vida social e cosmológica “pois além da culinária e do uso cosmético, é fundamental nas cerimônias de iniciação, nos rituais de cura e de proteção do corpo e dos males da alma (GARNELO, 2003 apud ANDRADE, 2021, p.17), sendo por isto considerado por eles como um o alimento para o corpo e alma.
No contexto de um ecoproduto gerado mediante os saberes tradicionais de uma comunidade indígena é tácito afirmar que existe uma transversalidade de domínios tecnológicos, passíveis de estudos “por meio de mapas tecnológicos que facilitam os processos de análise e representação de dados, promovendo a gestão das informações de patentes e a descoberta do conhecimento; os mapas são capazes de revelar todos os comportamentos subjacentes a um domínio”. (DÍAZ PÉREZ; DE MOYA ANEGÓN; CARRILLO-CALVET, 2017, p. 35).
Neste aspecto, o projeto se dedica a análise de domínios científicos e tecnológicos mapeiam o panorama de saberes tradicionais que foram gerados e consolidados por um povo, visando identificar possibilidades de proteção destas tecnologias oriundas de comunidades tradicionais.
Referências
ANDRADE, Andreza Silva de. Apimentando o ‘Insta’: a ritualização do consumo da pimenta baniwa no Instagram. In: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO, 28., 2019, Porto Alegre. Anais […] . Porto Alegre: Pucrs, 2019. v. 1, p. 1-22. Disponível em: https://proceedings.science/proceedings/100224/_papers/133335/download/abstract_file1 . Acesso em: 13 jul. 2022.
ANDRADE, Andreza Silva de. Da aldeia à alta gastronomia: a trajetória da pimenta Baniwa, práticas de consumo e representação midiática. 2021. 167 f., il. Dissertação (Mestrado em Comunicação) — Universidade de Brasília, Brasília, 2021. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/41364 . Acesso em: 25 jul. 2022.
BANIWA, Gersem. Indígenas no ensino superior: novo desafio para as organizações indígenas e indigenistas no Brasil. In: SMILJANIC, Maria Inês; PIMENTA, José; BAINES, Stephen Grant (org.). Faces da indianidade. Curitiba: Nexo Design, 2009. p. 169-186. Disponível em: https://www.academia.edu/224306/Faces_da_Indianidade . Acesso em: 25 jun. 2022.
BERGAMASCHI, M. A. Intelectuais indígenas, interculturalidade e educação. Tellus, [S. l.], n. 26, p. 11–29, 2015. Disponível em: https://www.tellus.ucdb.br/tellus/article/view/297 . Acesso em: 5 jun. 2022.
BORKO, Harold. Information Science: what is it?. American Documentation, v. 19, n. 1, p. 3- 5, Jan. 1968. Disponível em: http://www.marilia.unesp.br/Home/Instituicao/Docentes/EdbertoFerneda/k—artigo-01.pdf . Acesso em: 5 jun. 2022.
PÉREZ, Maidelyn Díaz; ANEGÓN, Félix de Moya; CARRILLO-CALVET, Humberto Andrés. Técnicas para la visualización de dominios científicos y tecnológicos. Investigación Bibliotecológica: archivonomía, bibliotecología e información, Ciudad de México, p. 17-42, ene. 2018. Disponível em: http://dx.doi.org/10.22201/iibi.24488321xe.2017.nesp1.57884 . Acesso em: 5 jun. 2022.
Sobre a autora
Célia Regina Simonetti Barbalho
Professora titular da Universidade Federal do Amazonas. Gestora da implantação do Núcleo de Informação Biotecnológica do CBA. Tem experiência na área de Ciência da Informação, com ênfase em gestão de unidades de informação, atuando principalmente nos seguintes temas: ensino superior, inteligência competitiva, biblioteconomia, gestão da informação e do conhecimento, planejamento estratégico e competências profissionais.
Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2000). Mestre em Ciência da Informação pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1995). Graduada em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Amazonas (1984).
Redação e Foto: Célia Regina Simonetti Barbalho
Revisão: Herta Maria de Açucena do Nascimento Soeiro
Diagramação: Herta Maria de Açucena do Nascimento Soeiro