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v. 1, n. 2, abr. 2023
Colhendo a palavra para semear a vida, Biblioteconomia e Ciência da Informação de Abya-Yala, por Natália Duque Cardona

Colhendo a palavra para semear a vida, Biblioteconomia e Ciência da Informação de Abya-Yala, por Natália Duque Cardona

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Colhendo a palavra para semear a vida, Biblioteconomia e Ciência da Informação de Abya-Yala

Natália Duque Cardona
natalia.duque@udea.edu.co

“Morimos. Ese puede ser el significado de la vida.
Pero nosotros hacemos el lenguaje. Esa puede ser la medida de nuestras vidas”
Tony Morrison

Eu poderia começar dizendo que minha jornada em Biblioteconomia e Ciência da Informação começou há dezesseis anos, quando cheguei a uma das principais escolas de Biblioteconomia da América Latina e Caribe: a Escola Interamericana de Biblioteconomia da Universidade de Antioquia na Colômbia (2007). Assim que terminei minha graduação em Biblioteconomia e iniciei meu mestrado em Educação com ênfase em estudos interculturais, quando cheguei à Faculdade de Educação e em um grupo de pesquisa de ponta para a época (2012), Diverser, a primeira coisa que enfrentei foi esquecer tudo o que sabia até aquele momento. Começo por aí, porque aquele “sacudida” como dizemos na Colômbia gerou em mim uma abertura não só mental, mas também de ação para o que hoje chamo de bibliotecas de Abya Yala.

A possibilidade de conhecer os estudos culturais, e especificamente a inflexão descolonial, levou-me a perceber que a Biblioteconomia e Ciência da Informação estavam de costas para os acontecimentos das ciências humanas e sociais, presos em si mesmos por uma relação endogâmica. 

E não só de costas, mas também sem ouvir a possibilidade de dialogar. Foi aqui que tudo começou, que marcou minha trajetória pensando, propondo e trilhando uma Biblioteconomia e outra Ciência da Informação, uma da América Latina e Caribe, da Abya-Yala.

As inquietações que, nessa altura, 2012, eu tinha ainda são vigentes, todas conduzem à mesma questão: Que Biblioteconomia e Ciência da Informação para que território? Por que e para quê a Biblioteconomia e Ciência da Informação? A quem se deve a Biblioteconomia e Ciência da Informação? Estas questões e um percurso histórico por ambas as disciplinas levaram-me a compreender que a biblioteca é um dispositivo colonial, mais do que a escola; e que a leitura, a escrita e a oralidade têm sido tecnologias de poder através das quais se implantou um projeto moderno euro centrado deste lado do Atlântico. Há algo que não consigo parar de pensar é: o que teria acontecido se estivéssemos falando sobre o povo Caral e sua forma de registro de 3.550 a.C. e não apenas a biblioteca mais antiga conhecida 2.550 a.C..

Porém, embora eu tenha muitas perguntas, há poucas respostas e enquanto a pergunta é o que podemos fazer com o que temos, com a herança, a tradição e o que sabemos hoje que não sabíamos antes; claro a favor da justiça social, de uma vida digna e de uma rebeldia justa. Isso me leva a propor, há uma década, uma proposta que denominei Biblioteconomia e Ciência da Informação de Abya-Yala, que nada mais é do que um esforço orgânico, constante e sistemático de pensar ciências situadas, contextualizadas em um território onde a diversidade e a diferença são suas riquezas fundamentais.

Embora esse exercício tenha começado na época vinculado à educação em leitura e especificamente com foco na memória cultural afro-colombiana (eu me reconheço como uma mulher negra) por meio de um programa de Educação Intercultural da Leitura – PELI -, posteriormente foi consolidado em uma Pesquisa-Ação Programa Bibliotecas de Abya-Yala, sociedades e culturas do Sul, que tratou de seis linhas de trabalho para aproximar a realidade social, de forma que as questões que se colocam na Biblioteconomia possam ser descentradas de uma matriz eurocêntrica e vinculadas à localidade, territórios e comunidades, dando lugar à consolidação e desenvolvimento dinâmico que caracteriza qualquer disciplina científica e que esteja em sintonia com a realidade. Em outras palavras, esta agenda de pesquisa-ação busca fortalecer as funções sociais da biblioteca pública, consolidar a Leitura, Escrita e Oralidade como tecnologias para a liberdade, formação de cidadãos cooperantes e comunitários e estabelecer ações afirmativas em prol da cultura e das bibliotecas. (DUQUE-CARDONA, 2018, p.101).

Hoje, com alegria, esperança e graças ao encontro dos colegas da região e de fora, posso dizer que além de ser um programa de pesquisa-ação, esse esforço é uma linha de pesquisa, a primeira com essa ênfase e essas características declaradas na América Latina e no Caribe. Claro que hoje existem muitos colegas trabalhando em questões semelhantes, o que é ótimo porque quando eu estava começando em 2012, ninguém dava um centavo por mim, como dizem na Colômbia. Na verdade, ainda hoje penso que este trabalho é um exercício de resistência às formas tradicionais em que vivemos microagressões em torno da injustiça epistêmica, quando não valorizamos o conhecimento produzido por não estar enquadrado em um método científico. Ou quando outros se apropriam, em virtude de sua trajetória e colocam em sua voz, histórias de um exercício que, como mencionei, já dura uma década. Esta proposta não é centrada na teoria crítica, é pensada a partir dos estudos culturais, da sociologia e da ciência política numa perspectiva anticolonial.

Atualmente estamos trabalhando na consolidação das Bibliotecas de Abya-Yala como proposta epistemológica para Biblioteconomia e Ciência da Informação. Nessa ordem de ideias, o fundamento filosófico que fomos apreendendo e aprendendo corresponde às filosofias do Sul, profundamente históricas: negra, feminista, camponesa, indígena, cigana. Isso nos permitiu refletir e repensar a Biblioteconomia e Ciência da Informação.

Trabalhamos com “outros” referenciais analíticos como: interseccionalidade (Patricia Hill Collins e Kimberlé Crenshwa), anarquismo epistemológico (Paul Feyerabend), conhecimento situado (Donna Haraway), justiça social (Nancy Fraser), teoria das capacidades (Martha Nussbaum) e crítica interculturalidade (Catherine Walsh e Silvia Rivera Cusicanqui), para caminhar e compreender situações e fenômenos da biblioteconomia.

O que corresponde ao quadro conceitual desta proposta retoma categorias que consideramos parte do núcleo duro da Biblioteconomia e Ciência da Informação, com um olhar interseccional que os estudos culturais, as ciências políticas, os estudos da memória, entre outros, nos possibilitaram. Aqui estão categorias como: linguagem, memória, informação, biblioteca – dispositivo cultural, entre outras.

Em nossa proposta epistemológica, este é o fundamento extra teórico, correspondente ao nosso lugar de enunciação, que não é apenas conceitual, é também espacial, e uma vez que o Sul Global e as diversas formas de nomeá-lo compõem o que hoje conhecemos como nossos quadros de enunciação (apesar de optarmos por Abya-Yala, outros sempre estão em nossas discussões): Améfrica Ladina, Indoamérica, Ñamérica, Latinoamérica.

Agora temos a sorte de ter um grupo de amigos e colegas (esperamos que cada vez mais se juntem) com quem trabalhamos juntos sob três premissas:

1. Desfocalizar da Biblioteconomia e Ciência da Informação propondo diálogos inter e extradisciplinares que permitam o fortalecimento de ambas as Ciências.

2. Nosso fundamento epistemológico corresponde às Bibliotecas de Abya-Yala.

3. O trabalho de ação e investigação que realizamos é descentrado do mundo académico, procuramos poder trabalhar lado a lado com o mundo da vida.

E a seguir, como esperamos continuar? Bem, em insistir e persistir que outros modos de produção de conhecimento são possíveis. Para isso, o sonho é um Observatório, já publicamos algo a respeito, mas agora estamos refinando a proposta para ver as possibilidades reais de implementá-lo.

E muitos sonhos que narramos na última versão do Encontro da Associação de Educação e Investigação em Ciência da Informação da Iberoamérica e Caribe – EDICIC (DUQUE-CARDONA, 2022, p.13)

• Uma história do livro, leitura, escrita, oralidade e “bibliotecas” de Abya-Yala

• O Património Cultural Imaterial para a Biblioteconomia e Ciência da Informação, a necessidade de uma mudança de paradigma nas disciplinas e na organização da informação

• Desenvolvimento das funções econômicas da biblioteca em relação às áreas rurais e suas economias camponesas.

• Desenvolvimento das funções ecológicas da biblioteca em torno da Era do Antropoceno

• Memórias do Sul, processos de resistência, capital cultural e processos de ordenamento social

• Diversidade humana, justiça social e biblioteconomia.

• (In)justiça epistêmica na informação e o lugar da biblioteconomia.

Por fim, e para não ficar “sem gosto”, pela forma como escrevo ou falo, faço-o sempre no plural, porque só o posso dizer depois de ter tido a sorte de estar rodeado e apoiado por muitas pessoas. Sinto que o que compartilho com vocês é a colheita da palavra, da ação, da paixão que insiste na Biblioteconomia e na Ciência da Informação como ciências onde germinam a vida e a humanidade.

Referências

DUQUE CARDONA, Natália. La incidencia de la biblioteca en la reducción de las desigualdades sociais: hallazgos y caminos a seguir. Códices, Bogota, v.14, n. 1, p. 79-113, 2018. Disponível em: https://cnb.gov.co/codices/online/Vol14-2018I/VII.pdf . Acesso em 29 mar. 2023.

DUQUE CARDONA, Natália. Una mirada amefricana a la bibliotecología y la ci: fundamentación desde el Sur. Revista EDICIC, Costa Rica, v. 2, n.1, p. 1-15, 2023. Disponível em: http://ojs.edicic.org/index.php/revistaedicic/article/view/187 . Acesso em: 29 mar. 2023.

Sobre a autora

Natália Duque Cardona

Professora Associada da Escuela Interamericana de Bibliotecología – Universidad de Antioquia. Medellín. Atualmente desenvolve o pós-doutorado em Teoría Crítica y Perspectivas Político-Metodológicas sobre Educación Inclusiva Transformadora en el Sur Global, no Centro de Estudios Latinoamericanos de Educación Inclusiva, Chile.

Doutora em Ciências Humanas e Sociais pela Universidad Nacional de Colombia. Mestre em Educação com ênfase em Estudos Interculturales e bacharela em Biblioteconomia pela Universidad de Antioquia. 


Redação e Foto: Natalia Duque Cardona

Revisão: Pedro Ivo Silveira Andretta

Diagramação: Pedro Ivo Silveira Andretta

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