
Reflexões sobre violência contra as mulheres negras e o conceito de interseccionalidade, por Gisele Rocha Côrtes

Reflexões sobre violência contra as mulheres negras e o conceito de interseccionalidade
Gisele Rocha Côrtes
giselerochacortes@gmail.com
O mês de novembro aglutina dois marcos de resistência, 20 de Novembro – Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, e 25 de novembro – Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres. Na celebração destas efemérides, escrevo com o intuito de aprofundarmos perspectivas de enfrentamento, no campo informacional, sobre as cruéis violências e feminicídios que afetam a vida das mulheres, em especial das mulheres negras. O assassinato de mulheres em dinâmicas estruturadas, nas desigualdades de gênero e na misoginia, é designado como feminicídio. Em 09 de março de 2015, no Brasil, foi sancionada a Lei nº 13.104/15, a qual define feminicídio como o assassinato de uma mulher, cometido por razões da condição de sexo feminino, quando o crime envolve violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação contra a condição de mulher.
Graças ao protagonismo dos movimentos feministas, a violência contra as mulheres tem se tornado um problema político. Por meio de diferentes vertentes teóricas e práxis política, mulheres organizadas, em especial, a partir das décadas de 1960 e 1970, visibilizaram o slogan “O pessoal é político”, reivindicando, dentre outras questões, o comprometimento do Estado na criação de políticas públicas específicas para as mulheres. Além disso, problematizam a concepção naturalizante de masculinidade, marcada pela utilização da força, do controle e da posse das mulheres.
A violência doméstica, uma das facetas da violência de gênero, atinge mulheres de todas as classes sociais, graus de escolaridade, religiões e grupos raciais/étnicos, entretanto, as pesquisas evidenciam que as mulheres negras são as mais impactadas. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública explicita que quatro mulheres foram mortas por dia no Brasil, no primeiro semestre de 2022. 62% das mulheres vítimas de feminicídio no país são negras, sete, de cada dez feminicídios, têm como alvo as mulheres negras. Conforme o Instituto Igarapé, o femincídio de mulheres negras aumentou 45% de 2000 a 2020 . O racismo estrutural (Almeida, 2021) e os reflexos do processo de escravização atingem diretamente a situação social das mulheres negras na sociedade, em diferentes contextos, no desigual acesso à educação, à saúde, ao mercado de trabalhos, e nos altos índices de violências.
Os atos de feminicídio articulam-se a diversos dispositivos ideológicos racistas que foram/são utilizados para anular a humanidade das mulheres negras e legitimar sistemáticas e desumanas violações (Carneiro, 2003). Nessa dinâmica, a representação e o corpo das mulheres negras são marcados por uma sexualização exacerbada e pela objetificação. De acordo com Gomes (2017), no Brasil, a construção das identidades negras é delineada por processos complexos.
Estas identidades foram (e têm sido) ressignificadas, historicamente, desde o processo da escravidão até as formas sutis e explícitas de racismo, à construção da miscigenação racial e cultural e às muitas formas de resistência negra num processo – não menos tenso – de continuidade e recriação de referências identitárias africanas. É nesse processo que o corpo se destaca como veículo de expressão e resistência sociocultural, mas também de opressão e de negação (Gomes, 2017, p. 194).
As resistências coletivas da população negra se destacam, desde o regime escravista, “[…] organizando-se de diferentes modos, com os quilombos, as insurreições, as guerrilhas, as insurreições urbanas, entre outros […]” (Munanga e Gomes, 2016, p, 98). O processo de luta do povo negro e das mulheres negras “vem de longe” e, neste contexto, é imperioso que a dimensão racial seja potencializada como elemento estruturante nos processos informacionais, de forma a subvertermos a concepção eurocêntrica e universalizante das mulheres e termos subsídios para o enfrentamento às desigualdades e violências contra as mulheres negras. Assim, considero que o conceito de interseccionalidade, desenvolvido por feministas negras entre as décadas de 1960 a 1980, com destaque para o protagonismo do Feminismo Negro [Black Feminism], contribui para subsidiar a atuação de profissionais da informação (Gonzalez, 1988; Akotirene, 2018;). O conceito de “interseccionalidade” foi cunhado pela jurista afro-americana Kimberlé Crenshaw, por meio de sua tese de doutorado , defendida em 1989 (Akotirene, 2018). Kimberlé evidencia como as discriminações de raça e gênero operam juntas e limitam as oportunidades das mulheres negras na sociedade (Crenshaw, 2002). Segundo Kimberlé Crenshaw (2002, p. 177),
A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras.
O conceito reconhece que as pessoas têm múltiplas identidades e experiências que são impactadas pela sobreposição de sua inserção em marcadores sociais construídos em estruturas sociais racistas, capitalistas e cisheteropatriarcais, em que as diferenças são convertidas em hierarquias. O conceito de interseccionalidade também nos possibilita explicitar quais são as pessoas realmente acidentadas pela matriz de opressões, conforme Akotirene (2018).
Mediante os apontamentos apresentados, de forma inicial, e tendo em vista os limites desta comunicação, espera-se pensar sobre o enfrentamento à violência contra as mulheres, em especial as negras, por meio de uma epistemologia, de resistência, produzida sob a ótica das mulheres negras como central para as próprias agentes e que possibilitem confrontar as práticas dominantes de conhecimento. Nessa perspectiva, a interface do conceito de interseccionalidade com Ciência da Informação pode potencializar a produção de conhecimentos e de práxis contra hegemônicas, a partir das experiências das mulheres negras de modo a expor suas reivindicações e evidenciar seu protagonismo enquanto pessoas pensantes e detentoras de saberes fundamentais para desconstrução de estruturas de poder que sustentam os sistemas opressores (Gomes, Côrtes, 2002; Silva, Garcez, Silva, 2022). A intersecção dos marcadores sociais de raça, gênero, classe social, localidade, deficiências, faixa etária, impactam as identidades, as experiências, o acesso e a apropriação da informação, tanto das/os profissionais quanto das pessoas usuárias nas ambiências informacionais. A mediação da informação, sob a perspectiva interseccional, fornece subsídios para mobilizarmos práticas de resistência no que tange a ressignificação dos regimes de poder racistas, capitalistas e cisheteropatriarcais, com prejuízos significativos às mulheres negras. A produção de pesquisas nesta vertente pode contribuir para subsidiar perspectivas de resistência para o enfrentamento ao racismo e a coibição, prevenção e enfrentamento à violência contra todas as mulheres.
Referências
ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Jandaíra, 2021.
AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? In: RIBEIRO, Djamila (coord.). Feminismos Plurais. Belo Horizonte: Letramento / Justificando, 2018.
BRASIL. Lei nº 13.104, de 09 de março de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, 10 mar. 2015. Disponível em Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13104.htm . Acesso em 04 dez. 2023.
CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. Racismos contemporâneos, Rio de Janeiro: Takano Editora, v. 49, p. 49-58, 2003.
CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero, Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, jan. 2002.
GOMES, Henriette Ferreira; CÔRTES, Gisele Rocha. Mediação consciente da informação e protagonismo social das mulheres: as práticas informacionais das teorias críticas feministas. In: ALVES, Edvaldo Carvalho et al (org.). Práticas informacionais: reflexões teóricas e experiências de pesquisa. João Pessoa: Editora UFPB, 2020. 400 p.
GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. São Paulo. Autêntica Editora, 2017.
MUNANGA, Kabengele e GOMES, Nilma Lino. O negro no Brasil de hoje. São Paulo: Global, 2016.
GONZALEZ, Lélia. A importância da organização da mulher negra no processo de transformação social. Raça e Classe, Brasília, ano 2, n. 5, 1988.
SILVA, Franciéle Carneiro Garcês da; GARCEZ, Dirnéle Carneiro; SILVA, Rubens Alves da. Conhecimento das margens: da injustiça epistêmica à valorização do conhecimento negro em Biblioteconomia e Ciência da Informação. Revista ACB: Biblioteconomia em Santa Catarina, v. 27, n. 1, p. 7, 2022.
Sobre a autora
Professora do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal da Paraíba e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal da Paraíba. Vice-Líder do Grupo de Estudo e Pesquisa Mediação, Representação da Informação e Marcadores Sociais da Diferença (GeMINAS).
Doutora e Mestra Sociologia pela Universidade Estadual Paulista. Bacharela em Pedagogia e Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista.
Redação e Foto: Gisele Rocha Côrtes
Diagramação: Pedro Ivo Silveira Andretta