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v. 1, n. 10, dez. 2023
Reflexões sobre bibliotecas e mediação cultural da informação no enfrentamento à violência contra as mulheres, por Luciane de Fátima Beckman Cavalcante

Reflexões sobre bibliotecas e mediação cultural da informação no enfrentamento à violência contra as mulheres, por Luciane de Fátima Beckman Cavalcante

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Reflexões sobre bibliotecas e mediação cultural da informação no enfrentamento à violência contra as mulheres

Luciane de Fátima Beckman Cavalcante

luciane.cavalcante@facc.ufrj.br

Embora as pautas feministas de defesa dos direitos das mulheres tenham avançado, o mundo e o Brasil ainda apresentam problemas, como o trabalho desigual entre homens e mulheres e altos índices de violência de gênero. Segundo a Organização Mundial da Saúde (2016), o Brasil é o 5º país do mundo com maior taxa de feminicídio. Para Rodrigues (2018, p.1) “O fenômeno da violência de gênero possui caráter social e histórico, pois se constituiu como uma das bases condicionantes das relações socialmente estabelecidas. Seja em nível conjuntural ou microssocial, a materialização desse fenômeno percorreu a história, assumindo diferentes facetas e matizes”

Ao longo da história as mulheres foram acometidas pelos mais diversos tipos de violências, as quais estão enraizadas no substrato do desenvolvimento das sociedades que foram constituídas de elementos estruturais da cultura do patriarcado, também multifacetados econômica e politicamente.

Nesse sentido, é importante refletir sobre como as bibliotecas, a partir da mediação cultural da informação, podem contribuir ao enfrentamento dessa infeliz realidade que acomete mulheres em todas as esferas da sociedade.

A  violência contra a mulheres está na pauta das discussões nacionais e internacionais como por exemplo, na série de medidas[1]  que asseguram os direitos das mulheres, assinadas pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 8 de março de 2023, que inclui projetos de lei e decretos em áreas como igualdade salarial e combate à violência política de gênero e raça, além de medidas que promovam a dignidade e a igualdade de oportunidades e o  no 5°  objetivo  de  desenvolvimento sustentável da Agenda 2030, que intenciona alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas  as  mulheres  e  meninas pelos  próximos  15  anos.

Nesse contexto, as bibliotecas, sejam esta escolares, públicas ou universitárias, têm uma função social, logo também podem ser promotoras do enfrentamento a tal violência por meio do desenvolvimento de diversas ações, o que amplia o olhar às práticas humanistas da biblioteconomia e seus profissionais, de forma a romper com estigmas tecnicistas da profissão e com a errônea visão de passividade de tais profissionais frente às questões sociais.  Nesse sentido, Izah (2021, p. 32) argumenta que “As bibliotecas e os centros de informação têm papéis críticos na criação e suporte de um ambiente que permite a todos, incluindo meninas e mulheres em suas comunidades, alcançar o uso ideal das informações e serviços fornecidos. São centros onde as pessoas adquirem o conhecimento necessário para reduzir a ignorância”. 

Uma vez que as bibliotecas têm um papel importante em relação ao acesso e disseminação da informação para a comunidade com a qual estabelece relações, não podem se furtar de enxergar e contribuir ao enfrentamento de problemas sociais crônicos, como por exemplo, os vários tipos de violências contra as mulheres. Para Drotner (2005) citado por Anaeme (2012) as bibliotecas há muito são mencionadas como instituições de conhecimento, pois proporcionam ao público espaços de informação e aprendizagem. Este papel da biblioteca deve ser visto na premissa de que o desenvolvimento da sociedade e dos indivíduos só pode ser alcançado através da capacidade de cidadãos bem informados exercerem os seus direitos democráticos e desempenharem um papel ativo na sociedade.

Para a IFLA (2017) violência ou privação contra uma mulher tem efeitos que se estendem além da vida dessa mulher e, inevitavelmente, atingem sua comunidade e a sociedade como um todo. Como tal, é importante encontrar formas de garantir o seu acesso à informação, bem como proteger os seus direitos culturais, agora e no futuro.  Dessa forma, considerando o infeliz cenário de desigualdade de gênero, sexismo e machismo presente em grande parte das sociedades, a mediação cultural da informação pode propiciar a compreensão da estruturação da ordem simbólica na construção da violência contra a mulher, assim como fornecer elementos que possibilitem a delimitação de ações culturais e informativas de natureza variadas ao enfrentamento de tais violências. 

Sendo os aspectos culturais inerentes aos contextos informacionais, bem como às relações estabelecidas entre sujeito e informação, cabe destacar a mediação cultural como fator crucial nesta relação entre os sujeitos e o mundo. Para Mendonça, Feitosa e Dumont (2019, p. 10), “a mediação cultural opera na forma de uma relação hermenêutica aplicada aos fenômenos informacionais, cuja regra de tradução se dá a partir da própria cultura, que, por sua vez, é interpretada como uma ordenação sistema criando significados diferentes” Já Bezerra e Cavalcante (2020) denominam de mediação cultural da informação, como o entendimento das múltiplas formas culturais de compreensão dos fenômenos informacionais existentes na sociedade, considerando questões de classe, etnia, gênero e diversidades.

Portanto, não é possível desvincular os fenômenos informacionais das estruturas culturais que ordenam as percepções dos sujeitos sobre tais fenômenos, bem como da própria relação desses sujeitos com as informações e ações que ocorrem no caminho de sua constituição como seres sociais, no ínterim da construção e reconstrução de significados a partir de contribuições culturais subjetivas que, no entanto, carregam intenções.

A mediação cultural da informação não se relaciona apenas a aspectos educacionais e artísticos, mas também como elemento social e histórico que pauta discussões políticas, de raça, classe e gênero. Nesse sentido, sendo a informação algo que promove o protagonismo social, a biblioteca e “o/a bibliotecário/a pode contribuir no enfrentamento da violência contra mulheres por meio da produção, organização, acesso e disseminação de conteúdos informacionais que promovam a subversão das desigualdades de gênero” como destacado por Ferreira e Côrtes (2017, p. 21).

Como exemplo de tais ações temos:  palestras, rodas de conversa com grupo de mulheres, elaboração de material informativo em linguagem acessível, disponível tanto em meio impresso quanto digital, desenvolvimento de programas informacionais e culturais de acolhimento às mulheres em colaboração com outros profissionais tais como psicólogos, assistentes sociais e advogados, ações culturais e lúdicas que impulsionem o desenvolvimento do pensamento crítico e reflexivo sobre a construção social das mulheres.

Outras ações também  são apontadas por  Tise (2009 apud Anaeme, 2012) como, por exemplo, (a) Documentação e divulgação de instrumentos internacionais e locais existentes sobre os direitos das mulheres através de folhetos, folhetos, etc. (b) Organização de horários nas bibliotecas públicas, programas de rádio/televisão sobre questões de direitos das mulheres. (c) Participação em reuniões de grupos de mulheres (d) Possibilitar legislação e litígios sobre questões que afetam os direitos das mulheres e a discriminação de género através do fornecimento de materiais jurídicos atuais sobre a questão.

A partir do exposto, se reforça o argumento de que o cenário da biblioteconomia, consequentemente da biblioteca e profissionais que nela atuam, não pode unicamente se preocupar com questões de ordem técnica, visto que é urgente a compreensão do valor social da biblioteca e das várias formas de mediação cultural da informação que nela podem ser desenvolvidas para o enfrentamento a determinados problemas que assolam a sociedade, tais como a violência contra as mulheres.

Desse modo, a biblioteca sob o escopo de sua  função social, pode atuar como promotora do enfrentamento a tal violência, de forma a contribuir ainda com o cumprimento do 5° objetivo de desenvolvimento sustentável (ODS), referente à igualdade de gêneros previsto na Agenda 2030. Para tanto, se faz necessária uma formação que permita com que os profissionais que atuam em bibliotecas desenvolvam senso crítico e possam compreender que os problemas informacionais, aqui também se insere a violência contra as mulheres, são perpassados por várias teias socioculturais, políticas econômicas e de relações desiguais de gênero, que devem ser consideradas ao pensar práticas de mediação nas bibliotecas.

Referências

ANAEME, Francis O. Reducing Gender Discrimination and Violence against Women through Library and Information Services. Library Philosophy and Practice. 2012. Disponível em:  http://digitalcommons.unl.edu/libphilprac/765 . Acesso em 06 dez. 2023.

BEZERRA,  Arthur Coelho; CAVALCANTE, Luciane de Fátima Beckman. Mediação cultural da informação para o reencantamento do mundo. Encontros Bibli: revista eletrônica de biblioteconomia e ciência da informação, Florianópolis, v. 25, p. 01–19, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.5007/1518-2924.2020.e72831 . Acesso em: 18 out. 2023.

INTERNATIONAL FEDERATION OF LIBRARY ASSOCIATIONS AND INSTITUTIONS. “Libraries and the cultural rights of women,” Women, Information and Libraries Special Interest Group Satellite Conference, Bratislava, Slovakia, 16 August 2017. Disponível em:  https://www.ifla.org/files/assets/hq/topics/libraries-development/documents/171222_libraries_and_womens_cultural_rights.pdf . Acesso em: 18 out. 2023.

FERREIRA, L. C. S.; CORTES, G. R. Enfrentando a violência contra as mulheres por meio da informação: o olhar dos/as estudantes de biblioteconomia. Conhecimento em Ação, v. 2, p. 19-26-26, 2017. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/rca/article/view/11722 . Acesso em: 06 dez. 2023.

IZAH, Maimuna. “The Role Of Libraries And Information Centers In The Provision Of Information Resources And Services For Gender Equality In Nigeria”. International Journal of Gender Studies, v. 6, n. 1, p. 31-40,  2021. Disponível em: https://doi.org/10.47604/ijgs.1304 . . Acesso em 06 dez. 2023.

MENDONÇA, I. L.; FEITOSA, L. T.; DUMONT, L. M. M. Por uma relação cultural com a informação. Tendências da Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação, v. 12, n. 2, 2019. Disponível em: https://revistas.ancib.org/index.php/tpbci/article/view/498 . Acesso em: 18 out. 2023.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU).  ONU Mulheres Brasil. Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres – Feminicídios. Brasília: ONU Mulheres, 2016. Disponível em: https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2016/04/diretrizes_feminicidio.pdf . Acesso em 06 dez. 2023.

RODRIGUES, Viviane Isabela. A trajetória histórica da violência de gênero no Brasil. ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM SERVIÇO SOCIAL, 1., 2018. Anais…Vitória. Anais… Vitória: UFES, 2018. p. 1-18. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/abepss/article/view/22225 . Acesso em 06 dez. 2023.

O texto é parte inicial das primeiras reflexões teóricas advindas de pesquisa em desenvolvimento sobre violência contra a mulher, com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Sobre a autora

Luciane de Fátima Beckman Cavalcante

Professora do Departamento Biblioteconomia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia. Membro do International Center for Information Ethics (ICIE). Professora Colaboradora do Programa de Pós graduação em Ciência da Informação da Universidade Estadual de Londrina.

Doutora e Mestra em Ciência da Informação pelo Programa de Pós Graduação em Ciência da Informação pela Universidade Estadual Paulista. Bacharela em Biblioteconomia pela Universidade Estadual Paulista.


Redação e Foto: Luciane de Fátima Beckman Cavalcante

Diagramação: Herta Maria de Açucena do Nascimento Soeiro

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