Informação sobre saúde e a epidemia de AIDS: Reflexões sobre o documentário “Carta para além dos muros”, por Djuli Machado de Lucca, Camila Letícia Melo Furtado e Priscila Maria Ferreira Guarate
Informação sobre saúde e a epidemia de AIDS: Reflexões sobre o documentário “Carta para além dos muros”
Djuli Machado de Lucca, Camila Letícia Melo Furtado e Priscila Maria Ferreira Guarate
djuli@unir.br
A temática da informação para a saúde, dentro da Ciência da Informação, tem despertado interesse dos membros do grupo de Pesquisa Competência em Informação e Mediação (GCInMe), vinculado ao Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal de Rondônia – UNIR.
Em princípio, sabemos que a relação entre a informação sobre saúde que circula nos grupos sociais em determinados períodos da humanidade, agregada aos comportamentos que as pessoas possuem em relação à informação que recebem pode interferir diretamente na saúde pública de uma população inteira, e os efeitos podem ser imediatos. Recentemente, foi possível observar isso de modo bem claro na pandemia do vírus SARS-CoV2, ou popularmente Covid-19, que durou entre 2020 e 2023. Também nesse período, ouvimos muito falar de ‘infodemia’, que é um conceito atrelado ao excesso de informações sobre um assunto específico que se multiplica de forma desordenada em um período específico – como as eleições presidenciais, por exemplo.
Porém, outro momento – cuja temática talvez não estivesse tão em voga – que foi possível observar a relação entre infodemia e a saúde da população foi a epidemia de AIDS, eclodida ainda na década de 1980, em cenário informacional ligeiramente distinto do atual. Sobre essa temática, o GCInMe promoveu uma discussão sobre o documentário “Carta para além dos muros”, que é uma produção brasileira lançada em 2019 sob a direção de André Canto e produção de André Canto e Rodrigo Ferrante.
O documentário aborda, a partir de histórias contadas por sujeitos atores que acompanharam a chegada e evolução da epidemia de AIDS no Brasil, questões sobre diagnóstico, aceitação, tratamentos e políticas públicas envolvendo a temática, e traz reflexões sobre desordens informacionais que provocaram também desordens sociais, predispondo às pessoas à vulnerabilidade. Emergem, por exemplo, o preconceito, a resistência da comunidade médica, o processo de lidar com a morte e com o próprio risco de infecção.
Em termos informacionais, podemos dizer que a gênese da desordem informacional ocorre na década de 80, especificamente no ano de 1982 surgem no Brasil os primeiros casos registrados da síndrome da deficiência imunológica adquirida, conhecida como AIDS. A doença inicialmente desconhecida tomou proporções incalculáveis, porém o que se sabia, inicialmente, era que a doença atingia predominantemente homens, sendo que 70% eram homossexuais.
Cartaz do documentário “Carta para além dos muros” – Wikipédia
Essa constatação inicial culminou em estigmas e descriminação para além do que já acontecia ao grupo de homossexuais. Tais estigmas apenas fragilizaram ainda mais as pessoas. De início, as informações incompletas e incipientes deram origem a informações falsas, abrindo espaço para a propagação de boatos que são potencialmente nocivos a todos os grupos sociais. Isso, de fato, prejudicou a correta compreensão da doença, e por consequência seu tratamento e disseminação desenfreada.
O documentário também expõe a alta taxa de mortalidade da doença no início da epidemia. Sob a perspectiva da desinformação, podemos observar o quão grande é a influência da falta de informação e da informação incorreta em situações como esta: fez com que as pessoas interpretassem a doença de diferentes maneiras e, a partir disso, as ideias que se formavam na sociedade sobre a doença abordavam definições como “praga do homossexual”, “peste gay” e “câncer cor de rosa”. Dessa forma, com o movimento gay em ascensão, a pessoa passou a não ser apenas gay, mas alguém que carregava, potencialmente, uma praga mortal.
A informação incorreta sobre as características da epidemia influenciou o cenário pandêmico de forma negativa a partir do momento em que teorias conspiratórias, impulsionadas principalmente pela igreja católica, passaram a agir como viés de confirmação entre as pessoas, assim como fazem as câmaras de eco nas redes sociais da atualidade. A parte perigosa dessa desinformação é que a posição ideológica das pessoas contribui para que as medidas de prevenção fossem encaradas de maneira ineficaz, como, por exemplo, o celibato fora do casamento, advindo da oposição ao uso de preservativo. Além disso, ao invés de promover a preocupação em salvar vidas, a discriminação era potencializada, a partir do momento em que as vitimas eram separadas entre o grupo dos “coitadinhos” (crianças e homofílicos) e o grupo dos “bem feito” (homossexuais, trabalhadores do sexo).
Analisando a desinformação na pandemia de AIDS nos anos oitenta e comparando-a com a do coronavírus em 2020, podemos considerar que esse fenômeno, além de dificultar as medidas de prevenção em ambos os casos, é atemporal. Se no passado as polarizações ideológicas contribuíram para a oposição ao uso de preservativo no caso de uma doença sexualmente transmissível, nos tempos atuais elas ajudaram a dar voz ao movimento antivacina, quando a ciência conseguiu desenvolver uma vacina a tempo de salvar as pessoas. Portanto, é importante discutir sobre a magnitude dos efeitos da desinformação não só em cenários pandêmicos, mas também em todas esferas sociais.
Da esquerda para direita: Priscila Guarate e Camila Furtado, pesquisadoras do grupo de pesquisa Competência em Informação e Mediação.
É neste cenário de preconceito e intolerância que surgem as movimentações civis e ativistas, como resposta da pouca ação do estado brasileiro em relação ao flagelo causado pela epidemia. O Grupo Gay da Bahia (1980), formado por ativistas gays articulou na época buscando direitos e lutando contra o preconceito, logo se prontificou a combater a AIDS promovendo a prevenção, o que contribuiu para a criação do primeiro grupo de apoio à prevenção à AIDS, denominado GAPA. O GAPA foi fundado em 1985, de iniciativa com base comunitária com a missão de cuidar das pessoas infectadas pelo HIV, não somente lidava com os pacientes, mas também promovia a prevenção e a disseminação de informações sobre a Aids. Além disso, o GAPA também contribuiu fortemente para a criação de políticas públicas como a Lei n. 7.670/1988, que viabilizou a concessão de licenças para tratamento de saúde, aposentadoria, reforma militar, pensão especial, auxílio-doença e pensão por morte aos dependentes.(CONTRERA, 2000).
Após surgir o primeiro GAPA, logo emergiram mais e mais grupos pelo Brasil voltados principalmente ao ativismo de pressionar o estado para tomar medidas mais duradouras e eficientes diante do quadro de epidemia da época. As áreas de atuação do GAPA são fortemente marcadas pelo uso da informação – a apropriação desta pela comunidade como forma de combate ao estigma, à prevenção da infecção. Por intermédio da informação foi possível produzir boletins informativos, reuniões, palestras, além de contribuir para o aumento de pesquisas e ações voltadas ao combate da AIDS. Esses fatos contribuem para a constatação da importância da informação como instrumento para a melhoria dos serviços de saúde e também do acesso da população a esses serviços. Esse é um exemplo de que, assim como tratamentos médicos e descoberta de imunizadores como a vacina, a criação e propagação de informações saudáveis e legítimas é essencial em períodos de crises de saúde pública.
Assim, Carta para além dos muros nos ensina sobre informação e realidade social e sobre a interferência desta sobre aquela. Estaríamos, neste período da história, mais preparados para lidar informacionalmente com situações epidêmicas? Teríamos salvo vidas e livrado pessoas do preconceito se tivéssemos acesso a informação confiável naquele período? Nosso período da história, nesse momento, permitiria que tivéssemos uma evolução epidêmica mais favorável e um desenrolar menos traumático para grupos sociais inteiros? Não podemos responder, mas podemos, na Ciência da Informação, promover formas de possibilitar que as próximas crises de saúde pública tenham a informação como um aliado para a solução.
Referências
CONTRERA, Wildney Feres. GAPAS: uma resposta comunitária à epidemia de AIDS no Brasil. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Políticas de Saúde, 2000. 68p. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/179_2Gapas.pdf . Acesso em: 07 dez. 2023.
CARTAS PARA ALÉM DOS MUROS. Direção: André Canto. Brasil: Netflix, 2019. Streaming (93 min.). Disponível em: https://www.netflix.com/br/title/81213977 . Acesso em 07 dez. 2023.
Sobre as autoras
É professora do Departamento Acadêmico de Ciência da Informação da Universidade Federal de Rondônia. Líder do Grupo de Pesquisa GCInMe – Competência em Informação e Mediação. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa GPCIn, da Universidade Federal de Santa Catarina. Desenvolve pesquisas relacionadas à competência em informação.
Bacharela em Biblioteconomia, Mestra e Doutora em Ciência da Informação pela em Ciência da Informação da Universidade Federal de Santa Catarina.
Mestranda em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Santa Catarina. Bacharela em Biblioteconomia pela Universidade Federal de Rondônia. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Competência em Informação e Mediação, da Universidade Federal de Rondônia. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
Priscila Maria Ferreira Guarate
Mestranda em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Santa Catarina. Bacharela em Biblioteconomia pela Universidade Federal de Rondônia. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Competência em Informação e Mediação, da Universidade Federal de Rondônia.
Redação e Foto: Djuli Machado de Lucca, Camila Letícia Melo Furtado e Priscila Maria Ferreira Guarate
Diagramação: Pedro Ivo Silveira Andretta