Editorial: Declaração Universal dos Direitos Humanos: 75 anos depois, ainda há muito a se fazer, por Rogério Sottili
Declaração Universal dos Direitos Humanos: 75 anos depois, ainda há muito a se fazer
Rogério Sottili
contato@vladimirherzog.org
Há 75 anos, no dia 10 de dezembro de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos era apresentada ao mundo como um testemunho dos horrores e das atrocidades daquele tempo de perseguições, mortes, crimes de guerra e campos de concentração.
Desse mesmo período, podemos lembrar da história do pequeno Vlado Herzog, filho de Zora e Zigmund. Com menos de 4 anos, junto com os pais e os avós, foi expulso de seu país pelo exército de Hitler durante a perseguição aos judeus.
Esse trágico momento seria o início de uma longa jornada em busca de segurança e dignidade para a família Herzog e tantas outras que sobreviveram a um dos momentos mais tenebrosos da história.
A partir desse momento, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, construída como um reconhecimento global de que as sombras da barbárie não poderiam mais tomar qualquer outra parte do mundo, estabelecia padrões globais para a proteção da humanidade, que deveriam ser reivindicados e exaltados em sua afirmação de que somente com direitos humanos respeitados a promoção da paz seria possível.
Mas aqueles princípios elaborados no contexto pós-Segunda Guerra Mundial, para a garantia da vida e da dignidade humana, seguem, passados tantos anos, sob ameaça constante da opressão e da violência.
75 anos depois, para lembrar o que Eduardo Galeano dizia, o século XXI que nasceu, tal qual o século passado, anunciando paz e justiça, segue banhado a sangue. Ainda hoje temos um mundo em guerra e muito por fazer.
Ao próprio Vlado não bastou sobreviver ao Holocausto. Aquele jovem jornalista, sonhador, de valores humanos tão íntegros, teve sua vida interrompida pela tortura perpetrada por uma ditadura autoritária, violenta e criminosa, que assolou o Brasil entre 1964 e 1985.
E embora as sombras da ditadura possam parecer distantes, nossa democracia segue sofrendo ameaças e sendo enfraquecida por fantasmas de um passado que não soubemos encarar e superar.
Segundo dados reunidos na plataforma RoW (Regimes of the World)1, o número de pessoas com direitos democráticos, de 2016 a 2022, caiu de 3.9 bilhões para 2.3 bilhões de pessoas ao redor do mundo. Em 2022, de acordo com outra interface de dados, a V-DEM2, em média os países receberam um score de 0.50 na escala de 0-1, valor abaixo da pontuação de 0.53 registrada em 2014.
Nesse mesmo sentido, o número de ativistas e defensores de direitos humanos assassinados também aumentou e em 2022 um relatório da Global Witness3 apontou o número recorde para o Brasil, com mais de 340 mortes, vitimando em grande parte indígenas ou negros.
Os jornalistas também foram alvo de violência. Em 2020, a América Latina foi a região com o maior número de jornalistas mortos por exercerem sua profissão. Em relatório produzido pelo Repórteres Sem Fronteiras4, ao longo da última década foram mortos 139 jornalistas e comunicadores no Brasil, Colômbia, México e Honduras. Como exemplo mais recente, na guerra de Israel contra o Hamas, 41 jornalistas foram assassinados5, o que corresponde a mais de um jornalista morto por dia, apenas no primeiro mês de ofensiva militar israelense.
Todos esses dados nos revelam o quanto a fragilidade da democracia colabora para a insegurança de defensores dos Direitos Humanos e profissionais da comunicação – tal como Vlado – que, por meio do trabalho, denunciam crimes e violações.
É urgente, portanto, manter, de maneira contínua e firme, a luta pelos Direitos Humanos, que atravessa não somente o tempo, mas as diversas dimensões da vida humana, como a educação, a liberdade de expressão e o direito à memória. É preciso olhar com coragem para os dias de horror, corrigir os rumos e garantir um futuro possível, digno e para todos.
Os desafios deste nosso tempo nos convidam para reflexões fundamentais sobre o papel de resistência nas academias, nos movimentos sociais e em outros espaços coletivos tão cruciais para a defesa dos direitos humanos e das democracias ao redor do mundo.
É evidente que todos os mecanismos e organismos criados para proteção dos direitos – há quase oito décadas – precisam ser repensados, sobretudo em tempos de crises climáticas constantes, migrações forçadas, avanço da pobreza, da violência contra mulheres e populações LGBTQIA+, e tantos outros aspectos extremamente desafiadores.
O mundo é outro. Temos diante de nós novas crises e desafios, mas as práticas e sistemas de violências são os mesmos. Por isso, é imperativo o papel da sociedade na revisão e na construção de novos caminhos que viabilizem a resistência pela garantia e ampliação de direitos. Somente assim seremos capazes de avançar e não retroceder jamais.
[1] OUR WORLD IN DATA. Disponível em: https://ourworldindata.org/ . Acesso em : 22 nov. 2023.
[2] VARIETIES OF DEMOCRACY. Disponível em: https://www.v-dem.net/ . Acesso em : 22 nov. 2023.
[3] GLOBAL WITNESS. Brazil. Disponível em: https://www.globalwitness.org/en/all-countries-and-regions/brazil/ . Acesso em : 22 nov. 2023.
[4] REPORTERS WITHOUT BORDES. 2011-2020: A study of journalist murders in Latin America confirms the importance of strengthening protection policies. Disponível em: https://rsf.org/en/2011-2020-study-journalist-murders-latin-america-confirms-importance-strengthening-protection . Acesso em : 22 nov. 2023.
[5] Até a data de 20 de novembro de 2023, conforme matéria publicada em:
REPORTERS WITHOUT BORDES. Israel/Palestine war: 41 journalists, more than one a day, killed in first month of Israel-Palestine war. Disponível em: https://rsf.org/en/israelpalestine-war-41-journalists-more-one-day-killed-first-month-israel-palestine-war . Acesso em : 22 nov. 2023.
Sobre o autor
Rogério Sottili
Diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog. Foi Secretário Especial de Direitos Humanos do Governo Federal, Secretário Municipal de Direitos Humanos da Cidade de São Paulo, Secretário Executivo da Secretaria Geral da Presidência e Secretário-Executivo da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
Redação: Rogério Sottili
Foto: Desinformante / Reprodução
Diagramação: Herta Maria de Açucena do Nascimento Soeiro